Rendas: influência da linguagem visual e técnica no design e arquitetura.


Artigo Apresentado no 9o. Colóquio de Moda - Fortaleza/2013
Universidade Federal do Ceará



 
 Vera Felippi.
 UFRGS - PPG Design. Brasil
 Evelise Anicet Rüthschilling
UFRGS – PPG Design. Brasil

 
Resumo

O artigo aborda a influência das rendas no design e na arquitetura. Identifica o uso de lógicas pós-modernas de transposição e deslocamento de contexto para inovação a partir da aplicação de linguagem visual e técnica de rendas no desenvolvimento de projetos fora da área têxtil. O objetivo do trabalho é compreender como se dão essas estratégias de inovação. A metodologia usada foi de pesquisa bibliográfica e de imagens em mídia impressa e digital.
Palavras-chave: renda, design, arquitetura.

Abstract

The article discusses the influence of laces on design and architecture. Identifies the use of the postmodern logics transposition and displacement of context to reach innovation, applying  the visual language and lace technique in development of non-textile  projects. The objective is to understand how work these innovation strategies. The methodology used was the bibliographic and image research in print and digital media.
Keywords: lace, design, architecture.

 
1.     Introdução

 
               Quando se fala em renda logo vem à mente um tecido refinado e delicado pertencente ao universo feminino, muito ligado a detalhes de roupas íntimas. Mas hoje a linguagem da renda formada por espaços cheios e vazios constrói objetos e reveste fachadas arquitetônicas, observando-se o deslocamento do universo do corpo para novos ambientes, inclusive de grande escala dimensional. Esses deslocamentos são propostos por profissionais de diferentes áreas e também a partir da iniciativa de instituições que fomentam a interação e experimentações de materiais e tecnologias com as rendas. Um exemplo a ser citado é a Federação Francesa de Rendas e Bordados, fundada em 1935, composta por setores profissionais que representa aproximadamente 50 empresas. Entre as ações promovidas pela entidade há uma competição entre alunos de escolas de moda, artes, design e arquitetura,  com a finalidade de incentivar a inovação a partir de referências do universo das rendas. A competição intitulada “Détournement de matières – Interprétations de dentelles et broderies pour de nouvelles applications”, lançada em 2004 oportuniza aos estudantes a exploração de referências do universo das rendas, bem como rendas propriamente ditas,  na criação de novos produtos juntamente com a  exploração de novos materiais.  Segundo informações disponibilizadas no site da instituição, na competição de 2010, foram envolvidas 12 unidades de ensino com 200 projetos inscritos. Além de promover as interações há também uma preocupação em preservar o conhecimento, o valor artístico, criativo e cultural das rendas.

 Esses fatos foram detectados em etapa de pesquisa de mestrado em design que estuda acervo de rendas, com vistas a disponibilizar a comunidade de design conhecimentos que possam apoiar futuros projetos de desenvolvimento de produtos. Nesse contexto, se tornou importante compreender melhor como e por que acontece hoje a aplicação da linguagem de rendas em áreas  hard (duras) do ambiente humano.

Para fundamentar teóricamente foram abordadas as lógicas de transposição e deslocamentos de contextos, apontadas como estratégias da pós-modernidade por Flávio Cauduro. As reflexões apoiaram-se também na teoria de  Winnie Bastian, que sistematizou a dinâmica das interações entre o design e a moda. Essa sistematização, a qual analisou em categorias as interações,  foi aplicada nesse artigo contribuindo para o estudo das influências das rendas no design e na arquitetura.

 
2.      Rendas

                    
           A renda foi definida em pesquisa de mestrado em andamento, como uma estrutura têxtil independente, ou seja, não necessita de outro suporte para existir. São fundamentalmente constituídas pelo desdobramento de linha no espaço, formando, por seu entrelaçamento, a estrutura do tecido. Essa estrutura é composta por espaços vazios e cheios que dialogam e obedece a uma ordem compositiva de repetição de motivos (rapport) ao longo da renda, caracterizando-se por ser um tecido com leveza e transparência.

Podem ser obtidas a partir de processos de confecção manuais ou industriais. Entre os principais processos manuais estão a renda de agulha (incluindo crochet e tricot), a renda de bilros e as que se formam por nós, como o macramê. Tanto nos processos manuais quanto industriais são utilizadas diversas possibilidades de matérias-primas (fios têxteis de diferentes composições) que combinadas resultam em rendas distintas em efeitos táteis, visuais e aplicações. Na sequência são apresentados decorrências da influência desse universo nas áreas do design e na arquitetura no contexto atual.

1.     As rendas influenciando o design e a arquitetura

Na contemporaneidade observa-se uma interação das referências do universo das rendas para áreas  como o design e a arquitetura. Essas interações ocorrem de diversas formas, principalmente em transposições e deslocamentos para novos contextos.

 De acordo com Flávio Cauduro (2007, p.277), transposições e deslocamentos são estratégias utilizadas na pós-modernidade. Para o autor, esse momento compromete-se “com modos de pensar e representar que enfatizam fragmentações, descontinuidades e aspectos incomensuráveis de um dado objeto, seja qual for a área de conhecimento (...)”. O excesso, o jogo, a mudança, a complexidade, o contraditório e a ambiguidade também fazem parte do pensamento pós-moderno sendo identificados e usados nas representações contemporâneas (CAUDURO, 2007).  

Para apoiar  as ideias de Cauduro, esse estudo é complementado pela teoria de Winnie Bastian, apresentada em sua dissertação de mestrado intitulada “Moda e Design: confluências e convergências”. Segundo a autora (2008, p. 73), no contexto contemporâneo as fronteiras que une diversas áreas apresentam interpenetração que, além de ser uma característica da pós-modernidade, permite o diálogo e a contaminação mútua. Na pesquisa, Bastian sistematizou a dinâmica entre o design e a moda em seis categorias, as quais são ordenadas a partir da interação mais suave, para a mais interativa. A partir da leitura dessa sistematização, foi percebido que a mesma pode ser aplicada para amparar a reflexão e exemplificação das influências da linguagem visual e técnica das rendas no design e na arquitetura.

As categorias elaboradas pela autora são: 1)Referências e influências criativas. 2) Transposição estética entre moda e design, 3) Transposição funcional entre moda e design, 4) Combinação sinergética entre moda e design, 5) Hibridismo parcial, 6) Hibridismo total.

Nesse artigo são usados apenas as três primeiras categorias da sistematização. As três últimas não são exploradas porque  até o momento não foram identificadas relações entre as rendas e as áreas propostas. Importante salientar que na pesquisa de Bastian, para exemplificar as interações apresentadas em sua dissertação, a autora fez um caminho entre design e moda, onde ora a moda influencia o design e ora o design influência a moda. Aqui, os exemplos usados em cada categoria faz um caminho unilateral, sendo sempre o universo das rendas influenciando as outras áreas. Sendo assim, a partir da apropriação da teoria da autora, na sequência são apresentados o conceito de cada categoria, ilustrados com exemplos encontrados na contemporaneidade que demonstram as possibilidades de interação das rendas com o design e a arquitetura.    

A primeira categoria, relativa a “Referências e influências criativas”, Bastian (2008, p.60) conceitua como a procura por influências, estímulos e subsídios em um universo para aplicar em outro. Podendo os resultados dessa interação serem visíveis e explícitos ou restringirem-se a esfera conceitual. Apropriando-se desse conceito podemos citar como exemplo a parceria entre a Hewlett-Packard e o estilista Alexandre Herchcovitch. Da parceria resultou um notebook personalizado, onde o estilista aplicou grafismos de renda em um aparelho produzido pela empresa, conforme Figura 1.

Figura 1: Referência de rendas aplicado em notebook e capa, resultado da parceria entre Alexandre Herchcovith e Hewlett-Packard





Herchcovitch usou a renda utilizada em sua coleção de outono/inverno 2012 para inspirar a personalização do notebook. O produto, comercializado no mercado com o nome HP Pavilion DM1, apresenta grafismo rendado em verde oliva, gravado em relevo no fundo cinza chumbo do aparelho. As gravações estão ao redor do teclado, do monitor e na tampa. Um case acolchoado, de cor dourada, que acompanha o notebook, contém o mesmo grafismo gravado em baixo relevo. O conjunto (aparelho e case) é comercializado mundialmente por ambas as marcas, porém trata-se de uma produção limitada.


Segundo Bastian (2008, p. 64) as referências criativas também aparecem nas demais categorias, com a diferença que elas passam a  ser usadas como referências iniciais e posteriormente sofrem relevantes alterações. Essas referências criativas podem ser percebidas na sequência pelos exemplos da segunda e terceira categorias.

Na segunda categoria, relativa a “Transposição estética entre moda e design”, a autora (2008, p.64) atribui a ocorrência quando as “características e elementos típicos de um universo são incorporados pelo outro”. As apropriações podem ser de materiais, formas e elementos compositivos. Analisando sob a ótica proposta nesse estudo, exemplificamos essa categoria, com o trabalho do designer holandês Marcel Wanders  que aplicou referências visuais e técnicas de rendas em suas criações, como é o caso da mesa Crochet Table (Figura 2). 

 

Figura 2: Marcel Wanders, Crochet Table (2001).





Fonte: http://www.moooi.com/products/crochet-table


De acordo com o site da empresa MOOOI, que comercializa o produto e onde Wanders é um dos fundadores, a mesa é feita “endurecendo” renda de algodão. A renda é confeccionada com técnica de crochet pela equipe do estúdio do designer. Para a construção da mesa, a renda reveste um molde (estrutura que dá forma ao mobiliário) e ambos são mergulhados em uma resina epoxy translúcida. Depois de rígido, o mobiliário mantém em destaque a renda permanecendo a resina transparente, tendo a função de estruturar a renda. Alguns detalhes técnicos, instruções de limpeza e  imagens da mesa estão disponíveis no catálogo virtual no site da MOOOI.

O designer já explorou e utilizou esse recurso em diversos outros objetos como cadeiras, mesas, luminárias e paredes. Neste caso não é uma produção em larga escala, a maioria dos produtos são feitos em séries limitadas e o designer enfatiza que, em alguns de seus produtos, explora a união de técnicas manuais com as tecnologias disponíveis. 

As criações de Wanders constam na dissertação de mestrado de Bastian (2008, p. 70) como objeto de estudo das interações entre a moda e o design, destacando a poltrona Crochet Chair, criada em 2006 e construída com a mesma técnica da Crochet Table. A revista Surface Design Journal, na edição de outono/2012, também deu destaque para o trabalho do designer, evidenciando a mesma poltrona. A edição abordava ambientes internos de diferentes espaços habitáveis dando ênfase para o “lugar” dos têxteis.

Na terceira categoria, relativa a “Transposição funcional entre moda e design”, são utilizados os recursos de forma funcional e até mesmo estrutural de uma área, aplicada em outra. De acordo com Bastian (2008, p.75) “os elementos utilizados vão desde detalhes construtivos, como dobras e recortes até materiais e peças”.

              Apropriando-se dessa teoria, selecionamos como exemplo a empresa holandesa Lace Fence Architectural Fabric, criada em 2005 que, segundo informações disponibilizadas em seu site[1], produz tecido arquitetônico personalizado. A ideia da empresa é unir funcionalidade e decoração. Seus produtos têm aplicações em áreas externas, como sacadas, cercas,  fachadas de edifícios e áreas internas em painéis divisórios. Em ambos os casos as dimensões são variadas. A figura 3 nos apresenta uma ideia do trabalho da empresa.   

Figura 3: Etapas do processo de criação de tecido arquitetônico rendado da empresa Lace Fence





A sequência demonstrada na figura 3 ilustra etapas de um dos processos de montagem de tecidos arquitetônicos da empresa. Essas etapas compreendem: vetorização de desenho de renda, produção das estruturas com dobras do arame e aplicação do “tecido” em fachada de edifício. De acordo com a empresa, o desenho vetorizado pode ser obtido tanto de seu próprio banco de imagens de rendas quanto de motivos enviados por clientes. Todas as imagens necessitam de conversão para desenhos vetoriais para posteriormente serem encaminhadas para a produção das estruturas.


Essas estruturas, ou tecidos arquitetônicos rendados, são  produzidas a partir de dois processos: 1) arame galvanizado revestido de PVC que são dobrados, caracterizando uma estrutura maleável que se aplica, por exemplo, em cercas; 2) processo por soldagem do arame, resultando em uma estrutura mais rígida que a anterior, sendo ideal para aplicação em sacadas.
Para produzir e alcançar os efeitos de reinterpretação da trama da renda, a Lace Fence utiliza processos manuais e industriais. O efeito visual dessas estruturas rendadas é realçado pela luminosidade do sol e iluminação artificial (noite) criando efeitos de luz e sombra, conferindo uma visualidade singular e original, além de manter o local protegido e ventilado.   
Os resultados apresentados a partir das três categorias sistematizadas por Bastian deixam evidentes a existência de diálogo e interação das rendas com outras áreas. Suas referências técnicas e visuais são transpostas e deslocadas para as áreas não têxteis, fornecendo elementos para inovação de objetos, independente de escalas de produção e dimensão. Essas questões foram percebidas tanto no trabalho do estilista Alexandre Herchcovitch que fez uso das referências para diferenciar o notebook da Hewlett-Packard a partir da exploração de grafismos. Quanto na mesa do designer Marcel Wander que evidencia a estética da renda valorizando aspectos técnicos e visuais; bem como nos tecidos arquitetônicos rendados da empresa Lace Fence, que explora as referências transpondo-as e fornecendo novos resultados estruturais, contemplando grandes dimensões.
Alcançar essas inovações são possíveis a partir da iniciativa dos profissionais, influenciados pelo cenário contemporâneo, combinados com a diversidade de materiais e ferramentas tecnológicas disponíveis. Fazer uso de referências do universo das rendas torna-se uma estratégia inovadora pela diversidade dos elementos visuais e técnicos intrínsecos as mesmas.  A partir da seleção de uma renda, independente da técnica empregada em sua confecção, um designer ou arquiteto poderá explorar possibilidades tanto a partir “do todo” quanto a partir de elementos, ou partes, que a constitui. Esses elementos podem ser, por exemplo, motivos (que podem ser figurativos ou não), um nó ou ponto de conexão dos fios, relações dos espaços vazios e cheios, entre outros. Ou seja, tanto em uma renda quanto em seus elementos podemos percebê-la como portadora de referências estéticas e de construção que podem ser diferenciais relevantes para inovar.

 

 
 


4. Considerações Finais

 
Esse estudo verificou que no contexto contemporâneo as rendas influencia áreas como o design de produtos e a arquitetura. Essas influências foram entendidas a partir da fundamentação teórica que contribuiu para a percepção dos motivos das experimentações entre as áreas, esclarecendo que as transposições e os deslocamentos de contextos que acontecem são estratégias usadas na pós-modernidade. A sistematização das categorias pelos níveis de  interações auxiliou na percepção das questões criativas, estéticas e funcionais apontada em cada exemplo apresentado.
As transposições e os deslocamentos do universo da renda para o design e arquitetura podem ser alcançados devido à diversidade de materiais e tecnologias existentes na contemporaneidade. Seja nos processos de gravação de grafismos em diferentes superfícies, seja na aplicação de tecidos de rendas aliados a novos produtos como as resinas ou na transposição de rendas para estruturas de arames que permitem alcançar grandes dimensões. Sendo assim, as rendas constituem-se de fontes de elementos visuais e técnicos para o desenvolvimento de produtos, independente da escala de produção ou escala de dimensão.  
Antes restritas o universo da moda e pequenos objetos decorativos passam agora a fornecer um amplo repertório de referências para a criação e inovação. A atuação de entidades como a Federação Francesa de Rendas e Bordadas também são importantes no avanço das fronteiras por apoiarem ações envolvendo instituições de ensino e alunos de diferentes áreas, promovendo explorações entre rendas, materiais e tecnologias contemporâneas.
 
5.     Referências bibliográficas
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BRIGGS-GOODE, A.; BUTTRESS, J. A Taxonomy of pattern through the analysis of Notthingham Lace. FTC Association of Fashion And Textile Courses. Inglaterra: Sally Wade, Kerry Walton, 2011.
BROWNE, Clare. Lace from Victoria & Albert Museum. V&A Publications, 2004. London.
CAUDURO, Flávio. Pós-modernidade e hibridações visuais. Revista Em Questão, v.13, n.2. Fabico-UFRGS, 2007.
EARNSHAW, Pat. Lace in Fashion-from the sixteenth to the twentieth centuries. Guildford: Gorse Publications, 1991. 
Fédération Française des Dentelles et Broderies. New use for materials interpretation. Disponível em: http://www.ffdb.net/action.php. Acesso em: 09/04/2013.
HUBBELL, Leesa. Tex-Chair: textiles take a seat. Surface Design Journal. Califórna, EUA. Edição Fall 2012.
 
LACE FENCE Architectural Fabric. Disponível em: http://lacefence.com/ENG/index.php. Acesso em 27/05/2013.
 
MOOOI Company. Disponível em: http://www.moooi.com/company . Acesso em 27/05/2013.
 
POWERHOUSE MUSEUM. Lace Study Centre. Disponível em: http://www.powerhousemuseum.com/collection/database/?irn=132841&search=bobbin+lace&images=&c=&s= . Acesso em 25/07/12.
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WARD, Lindie. Lace. Surface Design Journal.  Califórnia, EUA. Issue Spring 2011.






 
 

 
 

 











[1] Site da instituição: http://www.ffdb.net/action.php. Acesso em: 09/04/2013.
 


 
 
 

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