Um olhar sobre o papel da mulher rendeira na história da moda brasileira
ModaPalavra E-periódico 50 Ano 8, n.16, jan-jun 2015, pp. 50 – 60.
DOI:http://dx.doi.org/105965/19826158162015050
Vera Lucia Felippi da Silva Mestre em Design pela UFRGS
verafelippi@hotmail.com
Evelise Anicet Rüthschilling
Docente na UFRGS
anicet@ufrgs.br
Joana Bosak de Figueiredo
Docente no Bacharelado em História da Arte – UFRGS
joanabosak@gmail.com
Resumo
O presente artigo faz uma reflexão sobre o papel da mulher rendeira na
sociedade brasileira, discutindo as transformações, a apropriação do conhecimento e as
ressignificações do fazer manual de rendas no século XX e XXI. Para isso, apoia-se na
análise de imbricamentos sociais e culturais com abordagem pela micro-história de vida
da senhora da alta sociedade carioca, rendeira, usuária e colecionadora. Analisando os
dois principais cenários sociais, a elite e a classe trabalhadora, verificou-se que a relação
de produção de rendas, nos séculos estudados, modificaram-se em decorrência do atual
modelo de vida das mulheres.
Palavras-chave: História da moda; mulher rendeira; sociedade brasileira
Introdução
No Brasil o processo artesanal de tecelagem de rendas se mantém nos últimos
séculos como atividade predominantemente feminina nas diferentes camadas sociais.
Essa tradição do uso e fazer das rendas remonta ao período da Colônia e do Império, em
que a renda era parte fundamental da indumentária feminina:
"Traziam, debaixo da saia principal, duas saias de algodão, enfeitadas com
barrado de renda (a chamada ‘renda de ponta’) e bem engomadas, além da
‘camisa de dentro’ (espécie de combinação também debruada de rendarenascença)
(FALCI, 2010, p. 245).
Do século XX para o XXI, o uso e o fazer de rendas mantiveram sua importância, mas
em decorrência das conquistas feministas o cenário se modificou e, para compreender
essa transição, o estudo faz uma reflexão sobre o papel da mulher rendeira do século XX na sociedade brasileira, aplicando abordagem da Micro-História. Essa abordagem é
uma metodologia de pesquisa em História, definida como uma prática de estudo em que
é usado “um aspecto reduzido para enxergar mais longe” (BARROS, 2007, p.170),
ampliando a percepção dos elementos em questão, pelo modo como se vê o microuniverso
estudado. Segundo Barros (2007, p. 171), a ideia é que “embora não seja
possível enxergar a sociedade inteira a partir de um fragmento social, por mais que ele
seja cuidadosamente bem escolhido, será possível enxergar algo da realidade social que
envolve o fragmento humano examinado”.
A metodologia proposta foi considerada adequada devido ao rastro dos indícios
encontrados que se propõe abordar, a partir de uma trajetória específica e de uma
coleção como índices culturais que permitem identificar ressonâncias em uma história
coletiva, referente a uma época e a uma cultura. Esses indícios encontrados ou reconstruídos, são fundamentais ao paradigma postulado por Ginzburg (1994), dentro
da perspectiva da Micro-História, e propõem o olhar em uma escala reduzida.
Carlo Ginzburg trata das fontes na Micro-História com o uso do que chama
"paradigma indiciário", caracterizado pela capacidade de dados que aparentemente
foram ignorados, de “remontar uma realidade complexa, não experimentável
diretamente” (1994, p. 152). Trata-se de uma abordagem em parte dedutiva, em que,
como um “detetive”, o historiador se ampara nas evidências existentes para montar uma
trilha de rastros, que ao ser posta em relevo e em comparação, pode estabelecer uma
rede de nexos e relações possíveis de criar e mesmo “desvendar" um acontecimento ou
situações em tempos passados.
Importante salientar que a Micro-História possui características diferentes das de
estudo de caso. De acordo com Barros (2007, p.175), no caso da Micro-História o
recorte escolhido para estudo “existe em função de um problema, é este recorte que
define o problema”, estando ambos intimamente ligados. No estudo de caso se tem um
problema anterior para o qual é estabelecido um recorte no interesse de viabilizar a
pesquisa e/ou se tem um recorte prévio dentro do qual vão surgindo os problemas.
Pela abordagem usada, não se trata de traçar a biografia de um indivíduo por si;
sua vida está sendo analisada em função de fragmentos deixados que nos trazem e
fornecem subsídios para discutir um problema mais amplo, apresentado pelo olhar que
se pretende lançar sobre o papel da mulher rendeira na sociedade brasileira, apoiado em
dados levantados no Rio de Janeiro, Santa Catarina e Ceará.
A busca de evidências reconstruídas a partir de discursos fragmentários, estabelece a trajetória da mulher que pertenceu a uma tradicional família carioca,
rendeira, usuária e colecionadora de rendas que constituiu um acervo, hoje estudado
cientificamente em nível de doutorado. O acervo nos permite discutir a questão social e
a importância de sua materialidade, sendo esse testemunho e documento de um período,
considerando-o objeto de estudo da cultura material.
Nesta análise, a renda, como trama, imagem e cultura material não é só
representação: é o indício fundamental; o primeiro rastro do fio de Ariadne1
que nos
conduzirá ao desenrolar do labirinto a ser desvendado. Daí chegamos à colecionadora, à
família dela, à sua pertença sócio-econômica e cultural, à cidade, à época, ao papel
feminino, à história da mulher rendeira no Brasil.
A micro-história aceita que se tomem como verdadeiras as possibilidades
daquilo que reverbera no seu universo próximo, verificáveis através de outros trabalhos
analisados e do que já se conhece da história da mulher em situação semelhante à época.
O estudo ancorado na abordagem proposta, bem como a seleção bibliográfica de
apoio, nos permite refletir sobre o papel da mulher rendeira no Brasil, buscando
compreender os processos de transformação, apropriação do conhecimento e as
ressignificações do fazer manual da renda dentro de uma perspectiva maior, que intenta
situar o papel da mulher e de seus “fazeres" no século XX e XXI.
A mulher rendeira no século XX
O artigo “Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século XX”
(BIASOLI-ALVES, 2000) enfatiza que, para a mulher ser socialmente aceita, eram
levados em consideração os padrões de comportamento e atributos. De acordo com a
autora os valores ligados ao universo feminino, no período compreendido de 1890 a
1930/40 eram: submissão, delicadeza no trato, pureza, capacidade de doação, prendas
domésticas e habilidades manuais.
A partir dos anos 1930 inicia-se um período de transição (social, cultural e
econômica) em que a mulher tem espaço na escolarização e na profissionalização, mas
as maiores expectativas ainda recaem sobre o sexo masculino (BIASOLI-ALVES,
2000). Mesmo nesse contexto a mulher ainda carrega muitos dos valores do início do
século XX, tanto as que pertencem às camadas da elite, quanto àquelas das camadas
menos favorecidas economicamente da sociedade (RAGO, 2010).
De acordo com Gilda de Mello e Souza (1987), no capítulo em que trata do
antagonismo entre o sexo feminino e masculino, a autora considera que, após as duas
grandes guerras mundiais, as oposições entre os sexos foram atenuadas pois “atiraram
as mulheres, de improviso, às tarefas dos homens” (1987, p. 56). Ainda de acordo com a
autora, as mudanças afetaram a estrutura social, a divisão do trabalho, os costumes, a
moral e a vestimenta. Além disso, salienta-se que as mulheres foram libertadas de uma
“série de atividades produtivas que até então se realizavam no âmbito doméstico”
(GILDA, 1987, p.89), principalmente nos grandes centros urbanos, pois ali encontravase
com mais facilidade artigos industrializados (tecidos, rendas, roupas, chapéus, etc.).
Mesmo diante das mudanças que ocorreram durante o século XX, ainda
persistem interesses e particularidades nas “prendas e habilidades domésticas”, dentre elas o fazer manual de rendas. Nas camadas economicamente menos favorecidas, a
produção feita pelas mulheres assume uma importância de complementação financeira
do rendimento familiar. Segundo Arthur Ramos2
(1948, apud OLIVEIRA, 2014, p. 66)
a produção de renda era feita ”em sua maior parte, por mulheres negras e mestiças.
Filhas e mulheres de pescadores e, em alguns casos, lavradores, quase sempre
analfabetas e auxiliam na subsistência de família numerosa.”
Esse fato pode ser verificado no contexto de Florianópolis, polo de produção de
renda de bilros, até os dias de hoje, onde Bergamim (2013) comenta:
"As rendas aparecem quase que exclusivamente como complemento na renda
mensal da família, como uma atividade extra que a mulher realizava, além
dos afazeres domésticos e de atividades secundárias junto à pesca e a
agricultura, que realizavam em auxílio aos homens da casa. Digo auxílio,
pois as atividades femininas se restringiram, por muito tempo, ao âmbito
doméstico, fazendo com que as mulheres acumulassem assim, diversas
tarefas ao longo do dia (BERGAMIN, 2013, p.15)".
Por outro lado, o tecimento de rendas feito por mulheres da elite, assume um
papel diverso. Como não havia o intuito de comercialização e nem a necessidade de
complementação de renda familiar, podia ser considerada como uma atividade de lazer.
As mulheres produziam rendas que eram usadas para adornar suas roupas, roupas de
familiares (principalmente filhas), peças de enxoval e decoração para a casa.
A Micro-História da Sra. Lucy Niemeyer
Neste estudo a abordagem da Micro-História contribui para reduzir a escala de
observação com a intenção de melhor compreender aspectos relativos a mulher rendeira do século passado e compará-los aos do século XXI. Segundo Barros (2007, p.175) “são
comuns as escolhas de vidas ou trajetórias individuais para a realização de uma
observação intensiva, e algumas vezes anônimo”.
O indivíduo aqui estudado não é anônimo, trata-se da Sra. Lucy Niemeyer, e
leva-se em conta sua posição social face ao entorno: ela pertencia a uma família
abastada, da Zona Sul do Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. Sendo
assim, com o indivíduo situado em seu tempo e espaço, podemos compreender aspectos
específicos que se propagam em aspectos mais amplos da sociedade.
A Sra. Lucy3
nasceu em 19 de julho de 1906 e faleceu em 23 de dezembro de
1992. De acordo com sua filha, a mãe aprendeu a confeccionar as rendas ainda na
adolescência, como era de costume na época. Tinha muita habilidade manual e refinado
senso estético. Provavelmente tenha aprendido com as irmãs e/ou amigas, pois era filha
caçula de dez irmãos, sendo cinco mulheres.
Lucy, a filha, não se recorda de sua mãe ter repassado ou ensinado as técnicas
que dominava para outras pessoas, nem mesmo saberia citar quais eram essas técnicas
de domínio. Mas, quando sua mãe faleceu, deixou grande conjunto de rendas de
extrema beleza, que carregam grande conhecimento técnico. Na análise da MicroHistória
da Sra. Lucy, essa pesquisa buscou seguir os atributos do papel da mulher
rendeira carioca visando salvaguardar toda a riqueza material e simbólica.
Seria válido afirmar que os aspectos de vida da Sra. Lucy sejam válidos para
todas as mulheres na mesma condição social? Não é possível afirmar, pois a MicroHistória
não trabalha com generalizações (BARROS, 2007). O indivíduo humano
analisado, ou seja, a figura da Sra. Lucy e sua coleção de rendas fornece o “algo” para o
estudo, a realidade social e cultural de uma época.
O acervo de rendas
A coleção de rendas deixada pela Sra. Lucy é composta por itens confeccionados
em processos industriais e artesanais de diversas técnicas. Dentre as amostras artesanais
encontradas não é possível identificar quais foram feitas por ela e não há indícios ou
registros que comprovem a origem de cada item. Provavelmente essa coleção foi se
constituindo pela necessidade de ter “amostras” para reproduzir pontos e criar novos
desenhos. No caso das rendas feitas em processos industriais, podem terem sido
compradas para adornar roupas ou para a decoração da casa.
O esforço e cuidado da Sra. Lucy em colecionar as rendas nos fornece
“documentos”, registros que ilustram parte dos afazeres de mulheres de uma época,
entendidos como o legado cultural de um período e da atividade de tecer as rendas.
Esses documentos permitem a reflexão sobre o modo de vida e resulta testemunho de
um período e do fazer de uma sociedade, contribuindo de forma significativa aos
estudos da cultura. Trata-se de fontes documentais, portadoras de múltiplos sentidos, narrativas, significados e enredos. Além disso, coopera para análises práticas e
aplicáveis de processos de design têxtil e técnicas de tecelagem de rendas.
A coleção de rendas foi doada por sua filha, em 2011, para o Núcleo de Design
de Superfície da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde, desde então, tem
sido objeto de estudos científicos em nível de mestrado e doutorado, visando não só o
estudo do acervo em si, como promovendo sua interação com práticas contemporâneas
de desenvolvimento de produto. Em nível de doutorado está sendo construído um site
na Internet para disponibilizar consulta online ao acervo, bem como informações
históricas e técnicas, resultadas da pesquisa.
O acervo é constituído de 186 itens de renda que compreendem detalhes
decorativos para aplicação em roupas (bolsos, golas, barrados), rendas lineares de
diversas medidas e bases para construção de renda filé.
O conjunto de rendas se configura como acervo a partir do momento que saiu do
meio familiar da Sra. Lucy e passou para as mãos de uma instituição para o estudo
científico. Nesse estágio, assumem um novo papel (OLIVEIRA, 2014): o de objetos de
estudo da cultural material. Esses objetos foram criados no passado, continuam a existir
no presente e podem se perpetuar. Segundo Prown (1994), eles nos oferecem uma
oportunidade pela qual nos deparamos com o passado, temos experiência sensorial
direta tornando-se importantes na medida em que pode ser experimentado e interpretado
como evidência significativa das influências culturais que refletem e incorporam.
No campo da história da cultura material, não é o objeto em si mesmo que é
examinado, mas seus usos, suas apropriações sociais, as técnicas envolvidas na sua
manipulação, a sua importância econômica e sua necessidade social e cultural
(BARROS, 2009). No caso do acervo, a atenção também se concentra nas
considerações acerca de seus modos de uso, nas possibilidades de empregos
(vestimenta, decoração), no valor que teve (e tem) na moda, nas variações de produção
e uso nas diferentes camadas sociais. Além disso, os resultados de pesquisa podem
apoiar futuros projetos, em nível de design, moda e história, em contextos sociais,
acadêmicos e profissionais.
As ressignificações do fazer renda.
Diante de tantas perspectivas significativas para delinear o papel da “mulher
rendeira” e o “fazer rendas” na sociedade brasileira contemporânea, o estudo analisou dois cenários sociais principais: a elite e a classe trabalhadora. E pôde verificar que a
relação da senhora de elite, nos dias de hoje, com as rendas se modificou: ela não mais
tece, não coleciona, não há preocupação com a memória, mas as segue usando em seu
guarda-roupas, principalmente com rendas fabricadas industrialmente que atualmente
atingem alto grau de expressividade e qualidade. Quando usa as artesanais é porque
estão inseridas em roupas de coleções de estilistas de alta moda, como Lino
Villaventura, Ronaldo Fraga, Walter Rodrigues, Martha Medeiros, Márcia Gánem,
dentre outros que trabalham valorizando e atualizando os fazeres artesanais e
tradicionais de nossa cultura.
O cenário se transformou, o modus vivendi é outro. Muitas das mulheres da elite
que no início do século passado necessitavam apenas “mostrar” suas prendas e
habilidades, hoje estão inseridas no mercado de trabalho, gerenciando o próprio negócio
e são profissionais de sucesso. As que não têm uma profissão continuam se envolvendo
com atividades sociais, possuem perfil ativo nas redes sociais virtuais, blogs,
publicando o retrato de suas vidas e de sua família. Tudo indica que o perfil de mulher
como o da Sra. Lucy Niemeyer que tece, usa e coleciona rendas, não existe mais.
Já as mulheres rendeiras da camada mais baixa da sociedade se
profissionalizaram e continuam vinculando seu fazer à complementação financeira. Elas
se agrupam em cooperativas e associações de artesãs, próximas ou em contato com
centros urbanos litorâneos, visando fortalecer sua produção. Dessa forma, impulsionam
a produção e comercialização de rendas graças ao fluxo de turistas, grande mercado
comprador do produto “rendas”, com ênfase em peças de decoração de casa e, em
menor quantidade, roupas femininas e infantis.
Nesse contexto, Bergamin (2013) observa as rendeiras de Florianópolis.
Segundo a autora, as rendas produzidas visando a comercialização para os turistas,
passaram por um processo de transformação, principalmente de meados do século
passado em diante. Para aumentar a produção, as rendas de bilros recebem pontos mais
simples em sua construção. O mesmo ocorre com a renda filé, produzida no nordeste
brasileiro.
Essa estratégia de simplificação dos pontos é também uma forma de facilitar o
ensino das técnicas para as novas aprendizes. Segundo Bergamin (2013), até mesmo o
material foi alterado e adaptado: fios finos são substituídos por fios mais grossos, os
desenhos são mais simples, muito repetidos, diminuindo o tempo para a confecção de
determinada renda.
Por outro lado, algumas associações de mulheres rendeiras também
desenvolvem projetos orientados por estilistas de moda renomados. Esse tipo de
parceria contribui para a manutenção de saberes e dos valores culturais, estimulando o
resgate de técnicas e atualização dos desenhos, indicando para uma saída bem mais
promissora que a situação apontada anteriormente, da renda feita para turistas. Neste
caso, quanto mais elaborado for o ponto mais valor comercial a peça pode atingir, pois
trabalha-se com o exclusivo ou com produções de baixa escala. Mas a parceria com
estilistas nem sempre supre a necessidade de subsistência das famílias, muitas vezes são
projetos pontuais para determinada coleção. Por outro lado, existem os designers de
moda que assumem trabalhar somente com rendas, é o caso de Martha Medeiros,
Fátima Rendas e Márcia Gánem.
Em ambos os casos o estilista se integra de alguma forma ao grupo de artesãs
com objetivos específicos de criação de novos produtos, mas ambos têm uma
preocupação econômica e social. Também é comum a existência de projetos que
envolvem instituições públicas e privadas como Secretarias de Cultura e Sebrae,
integrando e promovendo a participação de designers para melhoria do artesanato.
Nesse contexto, um nome importante é o do designer Renato Imbroisi. Junto às
comunidades de artesãs, o designer tem desenvolvido um grande trabalho de resgate de
técnicas, incentivo a organização de associações. Nessa modalidade de trabalho,
oferecem ao mercado peças de design têxtil com valor agregado, contribuindo para a
melhoria de aspectos sociais e econômico das comunidades em que atua.
O aprendizado do fazer rendas se dá em grande parte por meio de um processo
empírico transmitido de mãe para filha e na interação de círculos sociais, bem como em
cursos promovidos por centros de artesanatos. Nesse processo, “o sujeito apropria-se
não somente de um fazer, mas de toda a história e valores que o caracterizam e, ao
mesmo tempo, imprime a estes sua marca singular” (BALBINOT; PEREIRA;
ZANELLA, 2000). Ou seja, cada “mão” que tece, imprime sua maneira de fazer,
característica do fazer artesanal.
Importante ressaltar que o interesse pelo aprendizado artesanal, principalmente
pelas jovens, vem diminuindo, o que se justifica pela exigência de muitas horas de
trabalho e a baixa remuneração (BERGAMIM, 2013). A urbanização crescente das
cidades, principalmente nas capitais apontadas neste estudo, possibilita uma maior
oferta de trabalhos em outras áreas com maiores salários, afastando as jovens do
trabalho artesanal de produção das rendas.
As rendas tecidas e colecionadas no decorrer da vida de muitas mulheres
rendeiras, durante séculos, não se perderam, estão hoje em poder dos museus ou
instituições culturais e de ensino, cuja missão é salvaguardar o conhecimento,
garantindo a memória do “fazer rendas”. Dentre os principais museus que possuem
acervo dedicado à rendas estão Victoria and Albert Museum (Inglaterra), Powerhouse
Museum (Austrália) e Metropolitan Museum of Art (EUA). Quanto às instituições de
ensino, a principal é Nothingham Trent University (Inglaterra). No âmbito cultural,
destaca-se o Atelier National Du Point d’Alençon (França). No Brasil, o destaque fica
por conta do acervo de Luiza e Arthur Ramos, com 1.706 itens de rendas, que hoje
pertence ao Departamento de Sociologia do Centro de Humanidades da Universidade
Federal do Ceará e pode ser visitado na Casa José de Alencar, em Fortaleza.
Muitas dessas instituições têm acervos com milhares de itens coletados e/ou
doados no decorrer dos séculos. Nottingham, universidade inglesa de 1840, possui em
seu acervo mais de 75.000 itens de rendas. Essas instituições citadas caminham no
sentido de valorizar bens da cultura material, percebendo-os como portadores de
saberes. Além disso, preocupam-se em promover a interação de seu acervo com
profissionais, estudantes, designers, artistas e pesquisadores.
Nesse mesmo caminho está o acervo de rendas deixado pela Sra. Lucy
Niemeyer, que, doado ao Núcleo de Design de Superfície da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, está sendo estudado cientificamente para disponibilização virtual,
visando atender a uma importante e crescente necessidade: ampliar o acesso às
informações e conhecimentos contidas nas rendas para designers, estudantes,
pesquisadores e artesãos do país e do exterior.
A metodologia de micro-história empregada neste trabalho permitiu a reflexão
do papel da mulher rendeira da elite, apoiado nas informações e suposições da vida da
Sra. Lucy Niemeyer, mas principalmente no acervo deixado, contribuindo para
organizar o cenário e compreender a realidade e a relação de seus atores.
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