Técnicas de limpeza têxtil no Renascimento

A  motivação para escrever este texto foi a partir da leitura de um artigo intitulado “Ye Shall Have It Cleane”: Textile CleaningTechniques in Renaissance Europe” da autora Drea Leed (link para acesso ao artigo original nas referências). 

Outra motivação é que nem todos tem acesso ou conseguem "encontrar" artigos científicos na web. Sendo assim, tenho a intenção de aproximá-los de algumas pesquisas interessantes e este é um artigo que pode interessar a diversos pesquisadores da área têxtil e também os curiosos sobre o tema.

Eu fiz uma versão em vídeo no meu canal do YouTube e você pode acessar clicando aqui.


O artigo em questão trata do Nuremberg Kunstbuch, escrito como um manual de instruções para as irmãs do convento de Santa Catarina em Nuremberg da Alemanha. Aparentemente os texto foram organizados em forma de livro no final do século XVI. No ano de 1596 ele estava em posse de uma irmã chamada Margaret Bindterin. Também foi neste ano que o convento foi dissolvido. Alguns anos depois, quando a irmã faleceu, os manuscritos foram doados á biblioteca de Nuremberg. 

Possivelmente seu conteúdo foi organizado a partir de outros escritos e livros ainda mais antigos e tratava não só da forma de confecção das vestimentas litúrgicas, como limpar uma variedade de tecidos e pintar e dourar manuscritos e tecidos. 

O Kunstbuch contém um total de doze receitas para limpar roupas, removendo manchas e restaurar a cor de roupas desbotadas. Conforme a autora, apesar de ser um número pequeno de receitas elas demonstram as circunstâncias das atividades de limpar e consertar roupas no período.

Abaixo seguem imagens com 4 receitas. Elas estão na versão original e também em uma tradução livre a partir da versão em inglês.

Não sei exatamente como se chama em português a planta "woad" que aparece na receita, mas abaixo segue uma imagem para você ter uma ideia do que se refere. É uma planta de pequeno porte, com flores amarelas. A receita também menciona o termo "água suja" e no decorrer deste texto eu explico do que se trata.


Por conta dos altos valores pagos pelos tecidos, havia sim uma preocupação em mantê-los limpos. Lembrando que o foco estava em roupas eclesiásticas e a maioria em tecidos como veludos, brocado, damasco e seda.

Outro ponto interessante diz respeito a cor, há um predomínio na menção da cor verde que, segundo a autora, era a cor usada no dia a dia. As cores vermelho, marrom e rosa também são mencionadas.

Já no que diz respeito aos tipos de sujeiras, predominam o vinho, a urina e a graxa.

A maioria das receitas no Kunstbuch são para soluções alcalinas de limpeza de manchas. Quatro especificam cinzas específicas para criar a lixívia: cinzas de videira, cinzas de faia, cinzas de “woad” e cinzas de lareira comum.

As soluções alcalinas, à base de lixívia ou cal, são outro agentes de limpeza comuns dos séculos XV e XVI, sendo aplicados  para remover manchas de natureza gordurosa e algumas proteínas e elas estão presentes em muitos manuscritos da época, inclusive com receitas descrevendo como fazer uma boa lixívias.

Muitas das substâncias mencionadas nos manuais de limpeza do século XVI, como ácido cítrico, fel de boi, fezes de alúmen, tártaro, cânfora e erva-sabão, estão ausentes do Kunstbuch. Isso não significa que essas substâncias não estivessem em uso no século XV até porque doze receitas é um número muito pequeno para considerar uma amostra verdadeiramente representativa. 

Há também menção do uso de limão e urina. E aqui entra a expressão "água suja" ou “foul water”, em inglês. Conforme a autora, seria um eufemismo para urina ou solução de urina/água. E teor de amônia da urina fermentada ou velha torna um limpador alcalino útil. A urina também aparece em outras receitas medievais de corantes como fixador de cor.

No texto a autora faz comparações com outros 4 livros, listados na imagem abaixo. Ela também faz algumas considerações sobre esses livros no que diz respeito a tradução e ao público alvo.

A partir do conteúdo dos livros, a autora faz algumas considerações sobre os produtos usados nas limpezas de tecidos, iniciando pelo sabão como item básico:

O sabão é um solvente natural para graxas e óleos e, como tal, é útil para removê-los de tecidos e fibras.

O alúmen (que é um mineral) é bastante mencionado somados ao  fel de um boi ou bezerro como agente umectante e a clara ou a gema de ovo que aparecem como agente dispersante ou emulsificante.

Outro produto são os resíduos sólidos depositados nos fundos das garrafas no processo de produção do vinho. Esses resíduos são ricos em ácido tartárico (conhecidos como tártaro, argol ou borras de vinho em fontes contemporâneas) . As qualidades ácidas do tártaro neutralizam um pouco a aspereza de uma solução alcalina.

Havia também os sequestrantes. Nas fontes dos séculos XV e XVI, o sequestrante mais mencionado é o suco de laranja ou suco de limão aplicado direta e repetidamente a uma mancha, às vezes complementado pelo calor é um método frequentemente especificado para tecido de linho, em particular linho manchado com ferrugem de ferro.

Usavam-se também agentes umectantes: como por exemplo a bílis de boi (boi bile). a ação ácida e enzimática da bile, é eficaz contra manchas de grama, graxa, vinho e outras manchas de base orgânica. Quando incluído em produtos de limpeza líquidos, a bílis de boi é sempre usado em combinação com tártaro e/ou lixívia.

Como alternativa ao sabão ou soluções líquidas eram usados o pó adsorvente borrifado sobre a mancha. Este método foi particularmente eficaz ao lidar com manchas de óleo e graxa e foi menos prejudicial para tecidos tingidos e sedas delicadas do que outros agentes de limpeza. Ossos queimados e em pó foram usados para este fim.

No que diz respeito a corrigir manchas e desbotamentos havia o hábito de incorporar agentes corantes na própria solução de limpeza. Além de serem difíceis de lavar, muitos tecidos da época eram coloridos com corantes menos resistentes e havia a necessidade de tomar medidas  para evitar o desbotamento das cores brilhantes.

(No texto a autora menciona o uso do pau brasil)

Então, para minimizar o desbotamento ou as manchas, dependendo da situação, a própria solução era colorida; em outros, o tecido que combinava com a cor do pano manchado era mergulhado na solução e esfregado na mancha, para obter o mesmo efeito. 

E a autora finaliza com a seguinte observação:

"Uma compreensão verdadeiramente madura dessas receitas e como elas funcionavam só pode ser alcançada por experimentação e análise química, e minha esperança é que este levantamento de técnicas e fórmulas forneça a outros um ponto de partida para buscar um estudo mais prático e aprofundado de química de limpeza têxtil na Europa renascentista" (tradução livre).

 Eu fico por aqui, espero que você tenha curtido este conteúdo que, no mínimo é curioso. Mas não deixe de acessar o artigo na íntegra para conhecê-lo com mais profundidade.

Abraço e até breve!

Vera



Referência:

Link para o artigo

https://www.academia.edu/5603810/Textile_Cleaning_Techniques_in_Renaissance_Europe


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